FÉ E CIDADANIA

Tudo o que fizeres a um destes mais pequeninos, será a mim mesmo que o farás”.


Na fé cristã, referimo-nos à pessoa e à mensagem de Jesus de Nazaré. Ora, em Jesus, a dimensão vertical, na condição de "íntimo” ante o Pai, na condição de filho, traz imediata conseqüência na linha horizontal, em que os outros são vistos e tratados como "irmãos". Razão porque o Evangelho se reforça como "boa notícia" em prol de uma “boa qualidade de vida” para excluídos. (João 10,10; Lc 4, 17ss).

Primeiro, como irmãos de Jesus, “Filho Primogênito”, somos como filhos; o que há de eliminar o medo e de injetar na vida a força de uma confiança filial. Conclusão, se Deus é Pai de "todos" e nós somos irmãos, isto nos dispõe a depor as armas a fim de marcar a humana convivência pela dimensão de uma solidariedade universal. Segundo, se Deus se faz visível na Criação e se humaniza em seus filhos, então, só fazemos o que lhe agrada quando lhe prestamos adoração mediante a responsabilidade cívica, fazendo a realidade política respirar a graça solidária e libertadora do Reinado de Deus.

Não se trata de laicizar a esperança cristã, nivelando o Projeto de Deus à dimensão política intra-mundana; porém, cabe à fé cristã um desempenho relativo às intenções divinas para um mundo de justiça e paz. À luz da fé, sempre estamos à procura da “cidade futura” (Hebr 13,14). Comprometida com os afazeres seculares, a Igreja continua um povo peregrino que, atuando no mundo, se inspira no sonho de Deus. Nada de idolatrar nenhuma forma de poder, pois em todo espaço e tempo continuamos sonhadores, tendo de acolher, inserir e completar a Boa Nova na realidade histórica.

Tudo o que valoriza as pessoas e dignifica a vida na construção de relações marcadas pelo bem comum e sua paz, faz parte de nossa missão e é do agrado de Deus. Tudo que prejudica o valor da vida e a dignidade das pessoas por relações de menosprezo e exclusão, não está de acordo com a vontade do Criador. Servir a Deus é solidarizar-se com o próximo para que sua vida seja de boa qualidade.”Os cristãos não se mostram inúteis nem se fazem exilados da vida”. (Tertuliano (séc.II).
Desde os primórdios, bispos se faziam chamar “defensores da cidade”, zelando pela ordem pública.

Além de exercer sua cidadania cotidiana, lutar por seus direitos e alertar governantes para os deveres da justiça, sofrendo até mesmo o exílio, como São João Cristóstomo (séc. IV), os cristãos erigiam hospitais, cuidavam de prisioneiros, resgatavam escravos e fundavam escolas públicas. À luz da fé, frente a Deus, não há liberdade responsável sem o compromisso social de imprimir justiça e fraternidade às relações em nossa convivência. Tarefa que implica exercício fraterno do poder político e cooperação dos governados em vista do bem comum, sempre a única finalidade.

Como no Primeiro Testamento, os profetas zelavam pelo bem do povo e se insurgiam contra a injustiça, assim nós herdamos de Jesus a inspiração de construir relações para promover pessoas e grupos. Remédio eficaz contra tirania e corrupção é a participação de todos no zelo pelos direitos sagrados da vida e da pessoa humana. Na América Latina, infelizmente, tem sido uma minoria, nas fileiras da Igreja, a imprimir à fé uma dimensão política. Lembramos o dominicano Bartolomeu de Las Casas (séc. XVI), como um apóstolo na defesa dos indígenas contra a crueldade dos invasores.

E gratos, cultivamos a memória de Dom Oscar Romero e Dom Helder Câmara e tantos outros líderes em comunidades, movimentos, sindicatos e Ong’s, muitos dos quais investiram sua vida nessa boa causa. Celebrar a “Memória de Jesus”, na Eucaristia, tem tudo a ver com nosso engajamento pelo social. Omitir-se neste setor, é trair a herança evangélica. Todo devocionalismo corre risco de se fazer túmulo de uma fé engajada e transformadora. Ninguém, pois, tem direito de chamar Deus de Pai se, ao mesmo tempo, não trata os semelhantes como irmãos.


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Frei Cláudio van Balen