M A R     A D E N T R O

 

 

Lições de um Filme

 

 

No dia 17/03/05, na companhia de M.R. e E., fui ver o filme “Mar Adentro”, do espanhol Alejandro Amenábar, com o ator Ramon Sampedro, marinheiro, amante de esportes náuticos que, aos 25 anos, acidentou-se em um mergulho fatal. Ficou tetraplégico. Após 28  anos de quase vida vegetativa, na solidão da cama, procurou em vão autorização legal para morrer de eutanásia. Supostos valores cristãos o manietaram à vida. Inconformado, assistido pela amiga Rosa, consegue realizar seu intento, sorridente e debaixo do último suspiro:  “Vamos!”.

 

Como observa José T. Barros, O filme não parece ser “um panfleto a favor da eutanásia, mas é  uma comovedora história humana de homens e mulheres reais postos diante do  mistério da vida, da morte e de sua responsabilidade pessoal. A alma das pessoas envolvidas transparece em cada gesto, em cada palavra, em cada silêncio, em cada olhar”. Beleza pura!  De nossa parte, fui invadido por sentimentos de respeito e de admiração diante dessas pessoas. Fomos invadidos por um forte questionamento frente ao mistério da vida, cuja resposta se eleva acima de nossas escolhas, as quais se limitam a um  modesto tempero.

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Como peixes no mar, como gotas no oceano, como partículas na atmosfera, como notas em uma partitura musical– sem a mínima possibilidade de escolha – parecemos ser compulsivamente lançados na misteriosa complexidade da vida. Não nos é permitido escolher a vida. Somos estigmatizados pelo peso de um poder que nos transcende. Será que a humanidade precisa de nós? Ela não poderia sobreviver sem cada um de nós, por mais sem sentido que pareça, às vezes, o destino de cada um?   Não passaríamos de uma simples obrigação tal como o ar que respiramos ou como o batimento de nosso coração?

 

Como o ator Ramon, temos um pai que nos chora para dentro da vida? É o Pai celeste que não dá conta de ser Deus sem nós? Tem compaixão ao ver-nos fustigados, porém nada pode fazer?  Saboreamos seu amável silêncio que se fez moldura do sofrido dever paterno. Sofrida impotência em sua distante transcendência. O máximo que o pai pôde fazer, foi chorar a rebeldia do filho. “Muito pior que perder um filho é ver o filho recusar de viver”. O pai – também o celeste – está atrelado ao filho. Em nós, ele vive; em nós, ele morre. Nosso querer é sua fragilidade. Mas se nos soltou, não haveria de ansiar por nós, livres?

 

O  filme nos mostrou que viver não é, primariamente, opção. Morrer apela à nossa decisão. Viver não é escolha. Lidar com ela é o grande e único desafio. Um cunhado, contrariado, tem de cuidar de Ramon.  Júlia, advogada – de doença degenerativa – o acompanha na luta. A doença a faz desistir da solidariedade. Igualmente trágica é a sorte de Rosa – infeliz no amor, com dois filhinhos. Ao querer morrer, i.é. desistir da luta, ela não pode.  Ou não ousa? Sua busca a dignifica. A vida a obriga a se libertar em seu amor. O amor a faz ajudar Ramon a morrer. Ele morrendo, ela renasce para a vida?

 

Beleza – estranha beleza – é a solidariedade-de-borboleta dos amigos. Por longos anos vivem na amizade com Ramon, ao menos em encontros esporádicos, registrados em algumas fotos. Eles não dão conta de acompanha-lo de perto, com gestos concretos. A limitação humana assusta, apavora. Deixa tantos sem mobilidade. No que a vida exige de nós, em sentido mais radical, sempre ficamos sozinhos, mesmo em meio a muitos. Essa vida se quebra no impacto com ondas aparentes escondendo areia traiçoeira. Confiamo-nos às ondas, mas elas nos traem. Covardes, elas? Nós, ingênuos? Vida a suscitar generosidade.

 

Estranha generosidade! Com leveza na gratuidade. Mulheres generosas que se espatifam no chão duro de frágeis sentimentos. Transbordam como vasos de perfume a nos fazer saborear, ligeiramente, o encanto do viver. Até mesmo na ansiosa busca de morrer. Generosidade de  homens que se torna cruel no esforço imposto. Torna-se vão no esforço desumano de um irmão. Presença amiga no jovem advogado a fazer  uma defesa, com persistência, mas sem êxito. A justiça mata,  não deixando morrer. Prepotência legal e religiosa enche a vida de ódio.

 

A dignidade de circunstantes consiste em lidar com a vida – odiada – mediante um carinho que quebra resistências, amarra em propósitos, revelando-se uma quimera. Para que tanto engano? Vida que circula em nós sem lógica e que, ora, nos visita na jocosidade de criança, ora na rabugice de adultos, contaminado pela radicalidade de princípios de fé. Vida, dever que eleva e esmaga, educando-nos para o direito de morrer. Viver : pesadelo que nos é impingido, morrer que se faz privilégio de poucos?  Pobre de Deus! Serve para justificar a insensatez  humana.

 

Interpelado para ajudar, invocado para legitimar, Deus mais serve para poluir sentimentos, desequilibrar emoções e  tornar equivocadas as decisões dos humanos. Como é difícil assumir a limitação humana com seu não-saber e não-poder! A sabedoria livresca de juízes os faz desumanos, insensíveis. Resta-lhes o dogmatismo moralista, acobertado por pretensa fé com subjugação e exclusão. Só quando de Deus se libertarem, mostrarão autonomia e poderão imprimir dignidade ao viver, permitindo que a morte se faça libertadora a serviço da vida.

 

Mar-Adentro : lava a impureza do viver e dignifica a fragilidade do morrer. Quanta pequenez a ocultar nobreza. Publicado o livro das poesias de Ramon, a advogada Júlia ajudaria o amigo a morrer - ela junto com ele. Porém, recuou. Com o livro, lhe entregou uma carta. Ramon não a abriu, não a leu. Do segredo da vida, ninguém nos pode dar a receita. Somos convidados a ser co-autores. Temos coragem? O filme nos mostrou : Se ouso viver para os outros, a morte vai ser benefício máximo para mim e para outros. Ramon viveu muito. E como viveu! Teria de viver mais? Aqui, não há medida? Alguém dispõe da régua? Silêncio!

 

Do pai silencioso brotaram estas palavras: “Amanhã, vai chover”. E insistiu. Simples reação de um observador aprisionado no medo ou constatação de quem sabe das coisas? Será que Ramon precisou negar a vida além da morte para ter coragem de assumir um suicídio assistido? Mergulhar no nada é mais cômodo do que  cair nos braços da Alguém? Viver com dignidade? Só se for desde já. Em qualquer situação. Digna, pois, não é a própria vida, mas nosso jeito de lidar com ela. Dignos no viver, somos capazes de fazer da morte uma escolha. Do contrário, impelidos a viver, igualmente seremos impelidos a morrer.

 

Quem sabe, torna-se praticamente impossível significar algo para outros, se não fazemos um pacto com a morte. Ela nos adestra em sugar pequenos prazeres da grande missão de viver. Ao viver morrendo, fazemos da vida motivo de riso e da morte um encontro, do qual haurimos a água da vida. Moralizar não cabe. Somos convidados a dar leveza emocional a um abraço. E  ao viajar no carro da morte, alguém há de correr, buscando nova motivação para viver. Basta isto. Viver é bom.  Pelo nosso modo de lidar. Na morte se esconde uma promessa. Viva a vida!

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                                                                                                      Frei Cláudio Van Balen